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domingo, 6 de julho de 2014

CARTA DA SENHORA GASTÃO A CONDESSA DE L'ESTORADE


CARTA DA SENHORA GASTÃO À CONDESSA DE L'ESTORADE 
20 de maio
Renata, chegou a desgraça; não, ela caiu em cima da tua pobre Luíza com a rapidez do raio e tu me compreendestes: a desgraça para mim é a dúvida. A convicção seria a morte.  Anteontem, após minha primeira toilette, procurei Gastão por toda a parte para darmos um pequeno passeio antes do almoço, e não o encontrei: Fui à estrebaria, vi sua égua banhada de suor, enquanto o groom com o auxílio de uma faca, limpava os flocos de espuma antes de enxugá-la. 
- Quem pôs Fedelta em semelhante estado?  perguntei. 
- O patrão - respondeu o menino. 
Verifiquei nos jarretes da água a presença da lama de paris, a qual não se parece com a do campo.
- Foi a Paris - pensei. 
Esse pensamento fez jorrarem outros mil no meu coração, afluindo a este todo o meu sangue. Ir a Paris sem nada me dizer, aproveitar a hora em que o deixo só, ir e voltar com tanta rapidez, a ponto de deixar Fedelta quase estafada!... A suspeita constringiu-me com seu terrível laço a ponto de me tolher a respiração. Retyirei-me a alguns passos dali, e sentei-me num banco para tentarrecuperar a calma. Gastão supreendeu-me nesta situação, lívida, assustadora, segundo parece, pois disse-me: - Que tens? tão precipitadamente e com um tom de voz inquieto que me levantei, e segurei-lhe o braço; mas tinha as articulações sem força e me vi constrangida a sentar outra vez; ele, então, tomou-me nos braços e levou-me a dois passos dali, para a sala de estar, onde a nossa criadagem assustada nos havia seguido; Gastão, porém, com um gesto, os mandou embora. Quando ficamos sós, pude, sem nada lhe querer dizer, fugir para o meu quarto onde me fechei para poder chorar à vontade. Gastão permaneceu cerca de duas horas,atrás da porta ouvindo os meus soluços, interrogando a sua criatura, com uma paciência de anjo, e e sem responder-lhe. 
- Eu o receberei quando meus olhos não estiverem mais vermelhos e quando minha voz não tremer mais - respondi-lhe por fim. 
O tratamento cerimonioso o fez retirar-se da casa. Lavei os olhos com água gelada, refresquei meu rosto, a porta do nosso quarto se abriu e e o encontrei ali; ele voltara sem que eu ouvisse o ruído de seus passos. 
- Que tens? - perguntou-me. 
- Nada - respondi. - Reconheci a lama de Paris nos jarretes cansados da Fedelta, não compreendi que tivesse ido sem me prevenir, és livre. 
- Como castigo por tuas desconfianças criminosas, só amanhã saberás dos meus motivos - respondeu ele. 
- Olha-me - disse-lhe eu. 
<mergulhei os olhos nos seus; o infinito penetrou o infinito. Não, não percebi aquela nuvem que a infidelidade espalha na alma e que deve alterara pureza das pupilas. Apresentei tranquilidade, conquanto continuasse inquieta. Os homens, tanto como nós, sabem enganar e mentir! Não nos separamos mais. Oh! querida, quanto por momentos, ao olha-lo, me senti indissoluvelmente presa a ele. Que tremores interiores me agitaram quando ele voltou depois de ter-me deixado só por um instante! Minha vida está nele e não em mim. Dei desmentidos cruéis á tua cruel carta. Senti eu jamais essa dependência com aquele divino espanhol para quem eu era o que este atroz pequeno é para mim?  Como odeio aquela égua! Que tolice a minha, em ter comprado cavalos! Mas seria preciso também cortar os pés de gastão, ou detê-lo no Chalé. Esses estúpidos pensamentos me ocuparam, por aí podes julgar da minha loucura. Se o amor não lhe construiu uma jaula, não há poder capaz de reter um homem que se entedia. 
- Eu te aborreço? - perguntei-lhe à queima-roupa. 
- Como te atormenta sem motivo! - respondeu-me com os olhos cheios de uma meiga piedade. - Nunca te amei tanto. 
- Sei isso é verdade, meu anjo adorado - repliquei-lhe - deixa-me mandar vender Fedelta. 
- Vende! - disse ele. 
Essa palavra como que me aniquilou. Gastão parecia dizer-me: "Só tu és rica, aqui; eu nada sou, minha vontade não existe". Se ele não o pensou, eu acreditei que o pensava e deixei-o novamente para me ir deitar; anoitecera.
Ó Renata, na solidão, um pensamento devastador nos leva ao suicídio. Os deliciosos jardins, a noite estrelada, a frescura que me trazia em ondas de perfume de todas as nossas flores, nosso vale, nossas colinas tudo me parecia sombrio, negro e deserto. Achava-me como que no fundo de um precipício entre serpentes e plantas venenosas; não via mais Deus no céu. Depois de uma noite dessas  uma mulher envelhece. 
- Monta Fedelta, vai a Paris - disse-lhe eu no dia seguinte pela manhã - não a vendamos; gosto dela; ela te carrega!
Não obstante, ele não se enganou com o meu acento, onde transparecia a raiva interior que eu tentava ocultar. 
- Confiança! - respondeu estendendo-me a mão num gesto tão nobre e dirigindo-me um olhar tão nobre que me senti aniquilada. 
- Somos bem pequenas! - exclamei. 
- Mão, amas-me, e eis tudo - disse ele, apertando-me contra si.
- Vai a paris sem mim - disse-lhe, fazendo-lhe compreender que não desistia de minhas suspeitas. 
Ele partiu, eu pensei que ele ficaria em casa. Desisto de te descrever meus sofrimentos. Havia em mim um outro eu, que eu ignorava. Essas espécies de cenas, querida, têm, para uma mulher que ama, uma solenidade trágica que nada poderia exprimir; toda a vida passa ante os nossos olhos, no momento em que elas se realizam, e o olhar não vê nenhum horizonte; o nada é tudo, o olhar é um livro, a palavra carreia blocos de gelo e, num mover de  lábios, lê-se uma sentença de morte. Eu esperava uma retribuição, pois tinha-me mostrado bastante nobre e grande. Subi até o alto do Chalé e segui-o com os olhos, pela estrada. Ah! querida Renata, vi-o desparecer com uma horrível rapidez. 
- Como ele vai correndo para lá! - pensei involuntariamente. Depois, quando me vi só, tornei a cair no inferno das hipóteses, no tumulto das suspeitas. Por vezes, a certeza de ser traída parecia-me um bálsamo, comparada com os horrores da dúvida!  A dúvida é o nosso duelo com nós mesmas, e nela nos fazemos terríveis ferimentos. Caminhava, girava em torno das alamedas, voltava ao Chalé, saía como uma louca. Tendo partido à sete horas, Gastão só voltou às onze; e, como pelo parque de Saint-Cloud e pelo Bosque de Bolonha, basta uma maia hora para ir a Paris, é claro que ele lá passara três horas. Entrou triunfante, trazendo-me um pingalim de borracha com castão de ouro. 
Fazia quinze dias que eu não tinha chicote; o meu, gasto e velho, se partira. 
- E foi por isso que me torturaste? - disse-lhe, admirando o trabalho daquela joia que contém uma caçoila na extremidade. 
Depois compreendi que aquele presente ocultava um novo engano; mas saltei-lhe prontamente ao pescoço, não sem lhe fazer ternas recriminações por ter-me imposto tão grandes tormentos por uma ninharia.  Ele se julgou muito esperto. Vi então na sua atitude, no seu olhar, aquela espécie de alegria interior que se sente quando impingimos uma mentira; escapa-se de nossa alma comoque um clarão, como um raio de nosso espírito que se reflete nas feições e que se desprende com os movimentos do corpo. Ao admirar aquele lindo objeto, perguntei-lhe, num momento em que nos olhávamos:
- Quem fez para ti esta obra de arte? 
- Um artista amigo meu. 
- Ah! Verdier o armou - acrescentei ao ler o nome do negociante, que estava impresso no pingalim. 
Gastão ficou como uma criança, corou. Cobri-o de carícias por ter tido pejo de me enganar. Fiz-me de inocente, e ele pôde julgar tudo terminado. 
Outra carta à 25 de maio.
No dia seguinte, cerca das seis horas, vesti meu traje de montar e, às sete horas, apresentei-me no estabelecimento de Verdier, onde vi vários pingalins do mesmo modelo.  Um caixeiro reconheceu o meu que lhe mostrei.
continuo em seguida


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